Pode a Prefeitura de São Paulo receber doações de bens e serviços de empresa privada?

Após os veículos de comunicação anunciarem de forma ostensiva que a Prefeitura de São Paulo vem recebendo diversas doações de bens e serviços de empresas privadas, foi protocolada no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no dia 10 deste mês, uma ação popular, com pedido liminar, para que tanto a Prefeitura de São Paulo quanto o atual prefeito João Doria sejam impedidos de receber doações de empresas privadas[1].

Minha intenção é enquadrar juridicamente a questão, discutindo o embasamento da ação popular e a validade das doações recebidas pela Prefeitura.

Em que se baseia a ação popular?

Pode a Prefeitura de São Paulo receber doações de bens e serviços de empresa privada? Há fundamento legal para isso?

A ação popular está prevista no artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal: ` qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência`.

É, pois, instrumento de participação do cidadão na fiscalização da atividade do administrador público, de defesa da coletividade, contra o abuso no exercício da função pública.

O cerne da ação popular protocolada no Tribunal de Justiça é a violação ao princípio da moralidade, previsto na Constituição, e portanto, o relacionamento entre o poder público e os empresários.

É o princípio da moralidade que estabelece diretrizes à administração pública, visando resguardar o interesse público, “exigindo que o agente público paute sua conduta por padrões éticos que têm por fim último alcançar a consecução do bem comum, independentemente da esfera de poder ou do nível político-administrativo da Federação em que atue[2]”.

O administrador público deve ter um comportamento ético. Vale dizer, deve cumprir os estritos termos da lei, não apenas em aparência, mas na essência de seu comportamento, sob pena de seus atos serem considerados inválidos para todos os fins de direito.

O objetivo do princípio da moralidade é, portanto, evitar o desvio do poder.

Mas será que ao receber doações de bens e serviços o Prefeito João Dória e a Prefeitura Municipal estão agindo contrariamente ao que determina a lei?

Há autorização legal que permita o recebimento de doações?

Há uma tradição na legislação municipal sobre as doações. Os ex-prefeitos Marta Suplicy (2001-2004), Gilberto Kassab (2005-2012) e Fernando Haddad (2013-2016), buscaram editar normas visando estabelecer parcerias e termos de cooperação entre o poder público e a iniciativa privada, bem como receber doações de bens e serviços da iniciativa privada. Todas continuam em vigor.

O Decreto 40.384/2001, promulgado durante o governo da ex-prefeita Marta Suplicy (2001-2004), versa sobre a doação de bens e serviços e o estabelecimento de parcerias com a iniciativa privada, com o objetivo de viabilizar projetos visando o pleno desenvolvimento do município, obedecidos os parâmetros legais`.[3]

A Lei 14.223/2006, denominada Lei Cidade Limpa, promulgada durante o governo do ex-prefeito Gilberto Kassab, dispôs sobre a celebração de termos de cooperação com a iniciativa privada, visando à execução e manutenção de melhorias urbanas, ambientais e paisagísticas, bem como à conservação de áreas municipais[4].

O Decreto 52.062/2010, também promulgado durante o governo do ex-prefeito Gilberto Kassab, conferiu nova regulamentação ao artigo 50 da Lei nº 14.223/2006, dispondo que “os titulares das Secretarias, Subprefeituras, Autarquias, Fundações, Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista do Município, no âmbito das respectivas competências, poderão celebrar termos de cooperação com a iniciativa privada, visando à execução e manutenção de melhorias urbanas, ambientais e paisagísticas, bem como à conservação de áreas municipais, atendido o interesse público”[5].

Já o ex-prefeito Fernando Haddad fez promulgar o Decreto 55.045, de 2014, que regulamenta a instalação e o uso de extensão temporária de passeio público, denominada “parklet” pela iniciativa privada, mas acessível ao público[6].

Assim, respondendo às indagações formuladas, podemos concluir que a legislação municipal autoriza o recebimento de doações, não estando o prefeito João Doria nem a Prefeitura Municipal agindo em desacordo com a lei.

Resta, contudo, analisar se as doações recebidas pelo prefeito estão sendo feitas de acordo com o estipulado na legislação.

Quanto à doação, dispõe o Decreto 40.384/2001, que todos que pretenderem realizar doação de bens ou serviços, com ou sem encargo para a Administração, poderão fazê-lo diretamente nas Secretarias Municipais, às quais competirá a análise da proposta[7].

O decreto é abrangente, amplo. Não apresenta restrições: `Todos aqueles que pretenderem …`

Ainda, dispõe o decreto, da possibilidade de o doador indicar a destinação específica do bem doado, sempre atendendo ao interesse público. Permite mesmo autorização, pelo Poder Público, de inserção do nome do doador no bem doado ou em material de divulgação do evento ou projeto[8].

A legislação municipal também prevê a possibilidade de parcerias entre a iniciativa privada e o Poder Público, caso em que as propostas devem ser encaminhadas às Secretarias Municipais, para análise, podendo resultar em patrocínio, co-patrocínio, convênio, colaboração ou apoio[9].

As Secretarias Municipais procederão ao chamamento, visando despertar o interesse da iniciativa privada, caso existam projetos oficiais[10].

A exceção à participação da iniciativa privada fica restrita aos casos em que as pessoas físicas ou jurídicas estejam em débito fiscal com a Fazenda Municipal (Artigo 8º, Decreto 40.384/2001).

Assim, segundo também divulgado pelos meios de comunicação, o secretário municipal de Justiça, Anderson Pomini, teria concedido entrevista afirmando que a Prefeitura tem feito publicar os termos de doação no Diário Oficial da Cidade, em até 20 dias do recebimento das doações. Também têm sido publicados no Diário Oficial do Município `chamamentos`, visando atrair a iniciativa privada aos projetos oficiais existentes.

Aparentemente, portanto, as críticas que a Prefeitura e o prefeito João Doria vêm recebendo, são fruto, uma vez mais, de ideário meramente político partidário. A legislação promulgada em gestões anteriores, ainda vigente, autoriza o recebimento de doações de bens e serviços e determina a forma como devem ser recebidas pelo Poder Público Municipal.

O que tem gerado dúvidas e críticas da sociedade por meio de seus veículos de comunicação, é o fato de o Prefeito João Doria anunciar, na maior parte das vezes, as doações que são recebidas nas coletivas de imprensa e nas redes sociais, fazendo assim uma propaganda gratuita das empresas doadoras (a Secretaria de Comunicação se manifestou publicamente dizendo que o prefeito tem declarado a disposição de uma ou outra empresa de participar do chamamento e que a definição somente ocorre após finalizado o prazo de chamamento).

Pode o prefeito anunciar a empresa que doou bem ou serviço? E a que pretende doar?

O artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto 40.384/2001, dispõe que o Poder Público poderá autorizar a inserção do nome do doador no objeto doado ou em material de divulgação do evento ou projeto.

Ora, se há permissão legal para inserção do nome do doador no objeto doado, ou em material de divulgação do evento ou projeto, podemos entender, por uma interpretação extensiva, que, uma vez aceitas e efetivadas as doações, as empresas possam ter seu nome divulgado nos canais oficiais da Prefeitura, até mesmo porque, em razão do estabelecido na Lei da Transparência – Lei nº 12.527/2011[11], estas devem ser publicadas em Diário Oficial.

Segundo informações prestadas pela Prefeitura aos meios de comunicação, as doações estão acontecendo sem contrapartida. A Prefeitura não tem autorizado a inserção do doador no objeto doado e nem em material de divulgação. Quando há contrapartida, como nas parcerias público privadas para manutenção de jardins, de acordo com o Decreto nº 52.062/2010[12], o administrador do espaço pode receber a permissão para instalar uma ou mais placas com o nome da empresa, sempre dentro dos parâmetros e dimensões permitidos.

Resta, portanto, a dúvida com relação ao anúncio pelo prefeito de empresa privada que pretende doar determinado bem ou serviço, antes de formalizado o termo de doação. Não configuraria esse ato, como boa parte da crítica presume, uma propaganda gratuita à empresa?

Eu entendo que o liame ético neste caso específico é muito sutil. O prefeito deve se abster de anunciar o nome e a intenção de empresa privada que ainda não consumou a doação. Uma vez efetivada e aceita a doação, pode e deve, em atenção ao princípio e à regra da transparência, a Prefeitura anunciar publicamente a doação e fazer publicar seus termos no Diário Oficial.

Com certeza esse não será um empecilho para que cada vez mais empresas busquem participar das ações da Prefeitura, fazendo doações de bens e serviços, ajudando a implementar os projetos de forma mais célere, beneficiando a coletividade e permitindo economia aos cofres públicos.

É um novo Estado que se desenha. E existem normas que sustentam sua implantação paulatina. Devemos, contudo, cuidar para que os projetos e as doações se façam no interesse público e que a divulgação se circunscreva aos parâmetros legais.

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[1]Grupo pede que Justiça proíba Doria de receber doações de empresas – www1.folha.uol.com.br/…/1865395-grupo-pede-que-justica-proiba…

[2] RE 579.951,Supremo Tribunal Federal, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, julgamento em 20-8-08, Informativo 516, interpretando o artigo 37, da Constituição Federal: `A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: …` .

[3] Decreto 40.384/2001. Art. 1.º – As Secretarias Municipais ficam autorizadas a receber bens e serviços em doação e estabelecer parcerias com a iniciativa privada, objetivando viabilizar projetos relacionados com os vários setores de suas respectivas áreas de atuação, obedecidos os parâmetros legais. Art. 2.º – Todos aqueles que pretenderem realizar doação de bens móveis e serviços, com ou sem encargo para a Administração, poderão fazê-lo diretamente nas Secretarias Municipais, às quais competirá a análise jurídica da proposta.

[4] Lei 14.223/2006, Artigo 50. O Poder Executivo poderá celebrar termo de cooperação com a iniciativa privada visando à execução e manutenção de melhorias urbanas, ambientais e paisagísticas, bem como à conservação de áreas municipais, atendido o interesse público.

[5] Decreto 52.062/2010. Art. 3º. Os titulares das Secretarias, Subprefeituras, Autarquias, Fundações, Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista do Município, no âmbito das respectivas competências, poderão celebrar termos de cooperação com a iniciativa privada, visando à execução e manutenção de melhorias urbanas, ambientais e paisagísticas, bem como à conservação de áreas municipais, atendido o interesse público`.

[6] Decreto 55.045/2014. Art. 1º A instalação e o uso de extensão temporária de passeio público, denominada parklet, ficam regulamentados nos termos deste decreto. Art. 2º Para fins deste decreto, considera-se parklet a ampliação do passeio público, realizada por meio da implantação de plataforma sobre a área antes ocupada pelo leito carroçável da via pública, equipada com bancos, floreiras, mesas e cadeiras, guardasóis, aparelhos de exercícios físicos, paraciclos ou outros elementos de mobiliário, com função de recreação ou de manifestações artísticas. Parágrafo único. O parklet, assim como os elementos neles instalados, serão plenamente acessíveis ao público, vedada, em qualquer hipótese, a utilização exclusiva por seu mantenedor.

[7] Decreto 40.384/2001. Art. 2.º – Todos aqueles que pretenderem realizar doação de bens móveis e serviços, com ou sem encargo para a Administração, poderão fazê-lo diretamente nas Secretarias Municipais, às quais competirá a análise jurídica da proposta.

[8]Decreto 40.384/2001. Art. 2.º, § 1.º – O doador poderá indicar a destinação específica do bem doado, desde que atendido o interesse público. § 2.º – O Poder Público poderá autorizar a inserção do nome do doador no objeto doado ou em material de divulgação do evento ou projeto, obedecidas as restrições legais aplicáveis ao caso concreto, em especial no que diz respeito ao uso de bens públicos e à proteção da paisagem urbana.

[9] Decreto 40.384/2001. Art. 3.º – Os interessados em desenvolver parcerias com o Poder Público poderão encaminhar suas propostas às Secretarias Municipais, para análise, devendo os ajustes delas decorrentes atender à legislação em vigor e à forma cabível, que poderá ser patrocínio, co-patrocínio, convênio, colaboração ou apoio. Art. 4.º – As propostas de parcerias aceitas serão registradas e os interessados convocados para a definição do plano de trabalho, conclusão do projeto e quotas de patrocínio a serem assumidas pela iniciativa privada.

[10] Decreto 40.384/2001. Art. 5.º – Os projetos oficiais serão objeto de chamamento pelas Secretarias Municipais, visando despertar interesse de parcerias para eventos específicos, no âmbito de suas competências.

[11] Lei 12.527/2011. Art. 1o Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal.

[12] DECRETO Nº 52.062/2010. Confere nova regulamentação ao artigo 50 da Lei nº 14.223, de 26 de setembro de 2006, o qual dispõe sobre a celebração de termos de cooperação com a iniciativa privada, visando à execução e manutenção de melhorias urbanas, ambientais e paisagísticas, bem como à conservação de áreas municipais, em consonância com o disposto no artigo 24 da Lei nº 14.517, de 16 de outubro de 2007; acresce o § 3º ao artigo 2º do Decreto nº 40.384, de 3 de abril de 2001, que dispõe sobre a doação de bens e serviços e o estabelecimento de parcerias com a iniciativa privada; revoga o Decreto nº 50.077, de 6 de outubro de 2008.


Roberta de Bragança Freitas Attié – Advogada em São Paulo e junto aos Tribunais Superiores; Especialista em Direito Privado, Direito Urbanístico, Arbitragem e Mediação.


Fonte: https://goo.gl/g2RQIa